Francisco Ricardo de Souza Jr (Chico Jr)
5ª PARTE
CAPÍTULO 2
GOIÁS E A MÚSICA SERTANEJA.
É na tentativa de resgatar a história da música sertaneja
goiana, e assim valorizar a nossa própria história, que faremos neste capítulo
uma análise do modo que o caipira goiano autêntico é levado para os grandes
centros e inserido no mercado fonográfico. Faremos essa recomposição para registrarmos
o limiar de nossa cultura sertaneja e mostrarmos o momento em que Goiás começa a
aparecer no cenário nacional como exportador da música sertaneja.
1.1
Nossa história sertaneja
Goiás,
que é visto como estado de referência para a música sertaneja nacional, uma
espécie de celeiro de criações de músicas desse gênero, não aparece em nenhum
registro da história da música sertaneja a não ser como tema muito explorado
pelos compositores paulistas ao citarem os sertões goianos em suas letras. A
questão é que o contexto e a produção cultural sempre foram pensados, vividos e
reproduzidos a partir dos grandes centros urbanos do país.
Na
busca por entender essa dinâmica da Música Sertaneja em Goiás, acabamos por
identificar que esse tema é relativamente novo na historiografia e nas Ciências
Humanas, como um todo.
O
estado de Goiás, assim como todos os estados do interior do Brasil na segunda
metade do século XX, passava por significantes transformações econômicas,
sociais, políticas e culturais, advindas principalmente do processo de
urbanização e da implementação de projetos para a modernização do país, desejo
do governo federal a partir da década de 50, principalmente com Kubitschek.
Metade
dos 70 milhões de brasileiros moravam no campo, portanto a troca de influências
com a cidade era grande. Valores profundamente arraigados do homem interiorano
chegavam à vida das metrópoles, assim como as novidades do progresso chegavam
ao interior, embrulhando toda uma forma de pensar e ser, modificando o
cotidiano da roça.
A
música sertaneja nesse cenário tem um papel muito importante, mais até do que
se possa imaginar. Além da função lúdica, de lazer, deve-se destacar seu papel
na produção econômica através do mutirão, no ritual religioso das festas
tradicionais da igreja e nas apresentações de circo como agregador da própria
comunidade, mantendo-a coesa através da prática e da preservação dos seus
valores culturais.
Escolhemos
para percorrer a produção musical goiana, a história de vida de um cantor e
compositor nascido no município de Orizona, no estado de Goiás, que encontrou
em Goiânia a possibilidade de desenvolver o seu dom e o seu sonho de se tornar
um “violeiro cantador – caipira”.
Francisco Ricardo de Souza conhecido no
cenário artístico goiano como Marrequinho, vivenciou a ascensão dos cantores
goianos nas décadas de 50 e 60. Escreveu suas memórias em um livro (no prelo), intitulado:
Marrequinho: o menino de Campo Formoso[1], livro autobiográfico que nos
apresenta vida e obra desse artista goiano. Esta se revelou uma preciosa fonte
histórica que nos apresenta o cotidiano de uma capital em formação, nos
disponibilizando relatos da sua história na música como cantor e compositor e
nos apresentando um panorama da música goiana.
Através
dessa autobiografia podemos identificar muito mais que uma trajetória de vida,
podemos identificar as mudanças culturais e sociais do período.
A
questão da escrita autobiográfica permeia o campo da memória, é a formulação de
um texto sobre sua própria trajetória de vida que se faz através do recurso da recordação,
resultado de uma lembrança que se torna linguagem, adicionada à imaginação e ao
olhar particular sobre tudo aquilo que se viveu.
Em A Escrita
da História de Michel de Certeau podem ser notadas suas preocupações com a
Lingüística. Para De Certeau, a escrita da História seria o discurso da
separação, através do qual o historiador pretende aprisionar o que, da
realidade que estuda, transparece em seus resquícios (De Certeau, 1982, p.
14-15). O discurso histórico seria produzido de uma maneira deslocada em
relação à realidade passada, uma vez que, para o autor, o passado não poderia
ser apreendido plenamente, não só pelas limitações dos métodos historiográficos
(recortes, triagem, inteligibilidade do presente), mas, principalmente, devido
ao lugar de onde fala o historiador.
De
Certeau salientou que o historiador produz seu trabalho a partir do presente,
das preocupações de sua realidade, fazendo de seu discurso um "discurso
particularizado", que tem um emissor, o historiador, e um destinatário,
seja ele qual for, a academia, a sociedade de forma geral ou um grupo
específico (De Certeau, 1995, p. 224). Essa discussão implicou numa constatação
vital para De Certeau: não se pode falar de uma verdade, mas de verdades (no
plural).
Para
De Certeau, essa problemática teria outro patamar e outro caminho. A idéia de
uma verdade universal foi igualmente refutada, porém, para o autor, o que a
História pode produzir são verdades, subjugadas aos limites das pesquisas
históricas e influenciadas pelo presente do historiador: "A historiografia
mexe constantemente com a história que estuda e com o lugar onde se
elabora" (De Certeau, 1982, p. 126). O que se apreende é a preocupação de
De Certeau em não negar a possibilidade de alcançar alguma verdade.
A
objetividade do discurso do historiador não estaria, portanto, mais relacionada
com visões acabadas, definitivas ou fechadas; o trabalho do historiador
residiria na busca de possibilidades, hipóteses de abordagem ligadas às suas
preocupações específicas, daí a existência de verdades. Essa mudança de perspectiva
introduziria a utilização da imaginação (não-ficcional) frente ao discurso
homogêneo e seu uso mais profundo na construção da linguagem histórica (De
Certeau, 1995, p.225-226).
A
questão central na obra de Maurice Halbwachs consiste na afirmação de que a
memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que
todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de
várias idéias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos ao indivíduo são,
na verdade, inspiradas pelo grupo. A disposição de Halbwachs acerca da memória
individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”. Vejamos:
Haveria
então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência
puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram
elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível
(HALBWACHS, 2004, p.41).
Para
além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir
desta vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar
representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que
imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma
memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é uma imagem engajada
em outras imagens” (HALBWACHS, 2004, p. 76-78).
Podemos
assim perceber como essa modalidade literária relaciona-se com o fato
histórico, em um movimento que busca a reconstituição do passado individual e
coletivo através da preservação pela memória. O texto escrito através dessas
memórias é também a suposta realidade (ou objeto).
O
autobiógrafo é um escritor-relator, aparentemente autônomo, já que pretende
modular sua própria identidade. Recuperando percepções pessoais e sociais,
dando passos largos em direção à ficção. Desta forma, o autor produz a história
ao mesmo tempo em que pertence a ela.
O
menino nascido no campo, órfão de pai, dirigiu-se, ainda criança, com sua mãe,
para a capital em ascensão, e ganhava a vida trabalhando desde engraxate até
lustrador de móveis para tentar sobreviver.
Mas,
o que eu queria, realmente, era me tornar um violeiro cantador. Um caipira.
Desde cedo (aos seis anos de idade), descobri certa queda para cantar em dueto,
modas sertanejas que eu aprendia ouvindo rádio (...) Cantar em dueto é um dom
nato de toda a minha família. Todos os meus irmãos eram cantadores. (p.10)
Neste
ponto percebemos que Marrequinho pende para o romantismo saudosista próprio
daqueles que vêem a canção caipira como a autêntica expressão musical do homem
rural brasileiro. No inicio de sua narrativa deixa claro que não pretende fazer
um estudo da história da música sertaneja em Goiás, e que o que ele fará é um
relato da sua vida que está ligada à história da música no Brasil, especificamente
em Goiás.
Em
Goiás, a música sertaneja principiou de maneira profissional com gravações na segunda
metade da década de 50, embora já existissem duplas que se apresentavam dentro
dos padrões estéticos da época, condizentes com o profissionalismo que se
esperava de um músico sertanejo, tais como Campeão e Rouxinol[2].
E neste período ocorrem alguns fatos marcantes
para o Centro-oeste, tais como a consolidação de Goiânia como pólo urbano, o
surgimento de estações de rádios como a Brasil Central e a Clube, o que
impulsionou a profissionalização dos artistas aqui radicados. A construção de
Brasília e a efetivação do centro-oeste como local onde o progresso se
estabeleceria e conseqüentemente um surto comercial e cultural da arte aqui produzida,
foram também marcantes nesta época.
Os
primeiros palcos desses artistas foram os botecos da “Campininha”, hoje um
tradicional bairro goianiense, berço da nova capital, assim como os parques de
diversões e os ranchos de palha da festa católica do Divino Pai Eterno, em
Trindade, GO.
O
começo não foi fácil para Marrequinho, candidato a cantor sertanejo: houve
algumas tentativas de formar duplas, como ele mesmo relata, mas tudo de forma
bem amadora. Esclarece que não existiam duplas fixas, era difícil encontrar
parceiros dispostos a seguir carreira de maneira mais profissional e que fossem
realmente bons músicos.
Dei
algumas ’’paietadas’’ com uma meia dúzia desses candidatos a violeiros, mas,
tudo de maneira muito informal, de forma amadorística mesmo. Uma cantiga aqui,
outra ali, nos botecos da ‘’Campininha’’, nos palcos dos parques de diversão e
principalmente nos ranchos de palhas na festa da Trindade, onde havia danças e
modas sertanejas além do atendimento profissional das prostitutas. (p. 12)
Marrequinho
relata que alguns dos ambientes em que se apresentavam eram pesados, perigosos,
repletos de vícios e práticas ilegais, apresentando assim um retrato da atmosfera
que freqüentavam e se apresentavam as duplas da época.
Além
das festas religiosas e parques de diversões, esses artistas tinham como palco
os cinemas e os circos, chamados “pauleiras”, que percorriam o interior do
estado. O autor explica que, em sua maioria, esses circos promoviam touradas e foi
o início das atuais grandes arenas de rodeio.
Nos
"nossos" circos, os bois que seriam "toureados" eram
alugados, ou, emprestados pelos donos de fazendas da região onde o circo
estivesse "fincado". No circo, não havia palco, não. A apresentação
dos artistas era realizada na própria arena, após ter sido feita a retirada dos
bois, do local. O som, geralmente consistia de um amplificador de pequena
potência (100 Wats), uma corneta amarrada na ponta de um mastro de uns seis
metros, que era fincado na frente do circo e de um microfone quase sempre de péssima
qualidade, que de vez em quando dava choque pra danar. O pedestal era um fio ou
uma corda amarrada de um lado no outro, nas varas mais altas que formavam o
círculo da arena, onde se pendurava o microfone. (p.60)
O
cachê era acertado na base da confiança, não havia contratos, na maioria das
vezes a renda do dia era divida entre o dono do circo e os artistas.
Marrequinho esclarece que não era fácil tal apresentação, que ele mesmo fez
algumas tentativas e não foi bem sucedido.
No
ano de 1945, Waldomiro Bariani Ortêncio, um paulista crescido em Goiás, fundou
o Bazar Paulistinha, que foi o primeiro representante de vendas de discos do
centro oeste. Motivado pelo forte movimento comercial e a confiança
estabelecida entre ele e as grandes gravadoras de discos, Bariani enviou os
primeiros artistas goianos para gravarem em São Paulo em 1957. A primeira gravação foi
feita por Goiá[3], Goiazinho e Zé Micuim, que
formavam o Trio Amizade seguido de duplas e trios como Melrinho, Belguinha e
Zino Prado, Brazão, Marinheiro e Vantuil, Marreco e Marrequinho, Adolfinho e
Chitãozinho, Venâncio, Venancinho e Cambuí que formavam o Trio da Vitória[4], Lindomar, que iniciou sua
carreira cantando música de Vicente Celestino adotará o sobrenome Castilho se
tornando Lindomar Castilho – O Cantor das Américas, Ninico e Senin (Franquito
Lopes) entre outros nomes (SOUZA. 2009, p.16).
Marrequinho em sua trajetória fez parcerias com
iniciantes como ele. Apresenta como sua primeira dupla Oswaldo, formando assim
a dupla Oswaldinho e Chiquinho, que acabou devido à falta de investimento
financeiro e imaturidade. Sua segunda dupla foi com um sanfoneiro de nome Relâmpago,
formando o dueto Relâmpago e Chiquinho ou logo depois como Nivaldinho e
Chiquinho. Relata que foi com este que aprendeu várias coisas; “inclusive beber
cachaça, o que, aliás, aprecio até hoje (com moderação, é claro)” (p.13).
Marrequinho[5] nos faz um relato da música
sertaneja em Goiás na década de 50. Esclarece que, neste período, a música
sertaneja era feita sem qualquer intenção de comercialização, fazia-se música
por prazer, mesmo porque não havia emissora de rádio em Goiás para divulgar os
trabalhos. Mas após o surgimento da primeira emissora de rádio surgiu também um
interesse comercial, primeiro por parte da emissora que precisava de atrações
para apresentar nos programas e depois dos próprios artistas, que queriam
mostrar seu trabalho.
Com o
surgimento da primeira emissora de Goiás, ai sim algumas duplas ou trios já
começaram a terem o interesse de se apresentarem em alguns programas existentes
na época. Tanto por necessidade das próprias emissoras de terem alguma atração
nos programas, como praqueles que cantavam e queriam naturalmente alimentar sua
vaidade mostrando seu trabalho ao público ouvinte daquelas emissoras. (p.61).
[1] Todas as
citações, a menos que se indique o contrário, são retiradas desta obra.
[2] Campeão que foi o compositor de uma
das músicas goianas mais executadas da época: A Canoa de jacarandá (SOUZA.
2009, p. 11).
[3] Goiá viria se tornar um dos grandes
expoentes da composição sertaneja com músicas como “Saudade de Minha Terra”,
“Recordação”, “Pé de Cedro” entre outras das mais de 400 músicas gravadas
criadas por ele.
[4] Gravaram grandes sucessos como Canoa de
jacarandá, Mil Mulheres, Vivendo longe do meu bem, Expresso boiadeiro entre
outros.
[5]
Entrevista concedida a este autor em Outubro de 2006
5/8
Continua...
CONTATO COM CHICO JR: (62) 84585052
E-mail: robsonechicojr@gmail.com
[1] Todas as
citações, a menos que se indique o contrário, são retiradas desta obra.
[2] Campeão que foi o compositor de uma
das músicas goianas mais executadas da época: A Canoa de jacarandá (SOUZA.
2009, p. 11).
[3] Goiá viria se tornar um dos grandes
expoentes da composição sertaneja com músicas como “Saudade de Minha Terra”,
“Recordação”, “Pé de Cedro” entre outras das mais de 400 músicas gravadas
criadas por ele.
[4] Gravaram grandes sucessos como Canoa de
jacarandá, Mil Mulheres, Vivendo longe do meu bem, Expresso boiadeiro entre
outros.
[5]
Entrevista concedida a este autor em Outubro de 2006
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