quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A MÚSICA SERTANEJA DE GOIÁS – 5ª PARTE

Francisco Ricardo de Souza Jr (Chico Jr)

                                                            5ª PARTE

                                       CAPÍTULO 2

                          GOIÁS E A MÚSICA SERTANEJA.


É na tentativa de resgatar a história da música sertaneja goiana, e assim valorizar a nossa própria história, que faremos neste capítulo uma análise do modo que o caipira goiano autêntico é levado para os grandes centros e inserido no mercado fonográfico. Faremos essa recomposição para registrarmos o limiar de nossa cultura sertaneja e mostrarmos o momento em que Goiás começa a aparecer no cenário nacional como exportador da música sertaneja.

1.1         Nossa história sertaneja

Goiás, que é visto como estado de referência para a música sertaneja nacional, uma espécie de celeiro de criações de músicas desse gênero, não aparece em nenhum registro da história da música sertaneja a não ser como tema muito explorado pelos compositores paulistas ao citarem os sertões goianos em suas letras. A questão é que o contexto e a produção cultural sempre foram pensados, vividos e reproduzidos a partir dos grandes centros urbanos do país.
Na busca por entender essa dinâmica da Música Sertaneja em Goiás, acabamos por identificar que esse tema é relativamente novo na historiografia e nas Ciências Humanas, como um todo.
O estado de Goiás, assim como todos os estados do interior do Brasil na segunda metade do século XX, passava por significantes transformações econômicas, sociais, políticas e culturais, advindas principalmente do processo de urbanização e da implementação de projetos para a modernização do país, desejo do governo federal a partir da década de 50, principalmente com Kubitschek.
Metade dos 70 milhões de brasileiros moravam no campo, portanto a troca de influências com a cidade era grande. Valores profundamente arraigados do homem interiorano chegavam à vida das metrópoles, assim como as novidades do progresso chegavam ao interior, embrulhando toda uma forma de pensar e ser, modificando o cotidiano da roça.
A música sertaneja nesse cenário tem um papel muito importante, mais até do que se possa imaginar. Além da função lúdica, de lazer, deve-se destacar seu papel na produção econômica através do mutirão, no ritual religioso das festas tradicionais da igreja e nas apresentações de circo como agregador da própria comunidade, mantendo-a coesa através da prática e da preservação dos seus valores culturais.
Escolhemos para percorrer a produção musical goiana, a história de vida de um cantor e compositor nascido no município de Orizona, no estado de Goiás, que encontrou em Goiânia a possibilidade de desenvolver o seu dom e o seu sonho de se tornar um “violeiro cantador – caipira”.
 Francisco Ricardo de Souza conhecido no cenário artístico goiano como Marrequinho, vivenciou a ascensão dos cantores goianos nas décadas de 50 e 60. Escreveu suas memórias em um livro (no prelo), intitulado: Marrequinho: o menino de Campo Formoso[1], livro autobiográfico que nos apresenta vida e obra desse artista goiano. Esta se revelou uma preciosa fonte histórica que nos apresenta o cotidiano de uma capital em formação, nos disponibilizando relatos da sua história na música como cantor e compositor e nos apresentando um panorama da música goiana.
Através dessa autobiografia podemos identificar muito mais que uma trajetória de vida, podemos identificar as mudanças culturais e sociais do período.
A questão da escrita autobiográfica permeia o campo da memória, é a formulação de um texto sobre sua própria trajetória de vida que se faz através do recurso da recordação, resultado de uma lembrança que se torna linguagem, adicionada à imaginação e ao olhar particular sobre tudo aquilo que se viveu.
Em A Escrita da História de Michel de Certeau podem ser notadas suas preocupações com a Lingüística. Para De Certeau, a escrita da História seria o discurso da separação, através do qual o historiador pretende aprisionar o que, da realidade que estuda, transparece em seus resquícios (De Certeau, 1982, p. 14-15). O discurso histórico seria produzido de uma maneira deslocada em relação à realidade passada, uma vez que, para o autor, o passado não poderia ser apreendido plenamente, não só pelas limitações dos métodos historiográficos (recortes, triagem, inteligibilidade do presente), mas, principalmente, devido ao lugar de onde fala o historiador.
De Certeau salientou que o historiador produz seu trabalho a partir do presente, das preocupações de sua realidade, fazendo de seu discurso um "discurso particularizado", que tem um emissor, o historiador, e um destinatário, seja ele qual for, a academia, a sociedade de forma geral ou um grupo específico (De Certeau, 1995, p. 224). Essa discussão implicou numa constatação vital para De Certeau: não se pode falar de uma verdade, mas de verdades (no plural).
Para De Certeau, essa problemática teria outro patamar e outro caminho. A idéia de uma verdade universal foi igualmente refutada, porém, para o autor, o que a História pode produzir são verdades, subjugadas aos limites das pesquisas históricas e influenciadas pelo presente do historiador: "A historiografia mexe constantemente com a história que estuda e com o lugar onde se elabora" (De Certeau, 1982, p. 126). O que se apreende é a preocupação de De Certeau em não negar a possibilidade de alcançar alguma verdade.
A objetividade do discurso do historiador não estaria, portanto, mais relacionada com visões acabadas, definitivas ou fechadas; o trabalho do historiador residiria na busca de possibilidades, hipóteses de abordagem ligadas às suas preocupações específicas, daí a existência de verdades. Essa mudança de perspectiva introduziria a utilização da imaginação (não-ficcional) frente ao discurso homogêneo e seu uso mais profundo na construção da linguagem histórica (De Certeau, 1995, p.225-226).
A questão central na obra de Maurice Halbwachs consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias idéias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos ao indivíduo são, na verdade, inspiradas pelo grupo. A disposição de Halbwachs acerca da memória individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”. Vejamos:

Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível (HALBWACHS, 2004, p.41).

Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir desta vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é uma imagem engajada em outras imagens” (HALBWACHS, 2004, p. 76-78).
Podemos assim perceber como essa modalidade literária relaciona-se com o fato histórico, em um movimento que busca a reconstituição do passado individual e coletivo através da preservação pela memória. O texto escrito através dessas memórias é também a suposta realidade (ou objeto).
O autobiógrafo é um escritor-relator, aparentemente autônomo, já que pretende modular sua própria identidade. Recuperando percepções pessoais e sociais, dando passos largos em direção à ficção. Desta forma, o autor produz a história ao mesmo tempo em que pertence a ela.
  

O menino nascido no campo, órfão de pai, dirigiu-se, ainda criança, com sua mãe, para a capital em ascensão, e ganhava a vida trabalhando desde engraxate até lustrador de móveis para tentar sobreviver.

Mas, o que eu queria, realmente, era me tornar um violeiro cantador. Um caipira. Desde cedo (aos seis anos de idade), descobri certa queda para cantar em dueto, modas sertanejas que eu aprendia ouvindo rádio (...) Cantar em dueto é um dom nato de toda a minha família. Todos os meus irmãos eram cantadores. (p.10)
           
Neste ponto percebemos que Marrequinho pende para o romantismo saudosista próprio daqueles que vêem a canção caipira como a autêntica expressão musical do homem rural brasileiro. No inicio de sua narrativa deixa claro que não pretende fazer um estudo da história da música sertaneja em Goiás, e que o que ele fará é um relato da sua vida que está ligada à história da música no Brasil, especificamente em Goiás.
Em Goiás, a música sertaneja principiou de maneira profissional com gravações na segunda metade da década de 50, embora já existissem duplas que se apresentavam dentro dos padrões estéticos da época, condizentes com o profissionalismo que se esperava de um músico sertanejo, tais como Campeão e Rouxinol[2].
 E neste período ocorrem alguns fatos marcantes para o Centro-oeste, tais como a consolidação de Goiânia como pólo urbano, o surgimento de estações de rádios como a Brasil Central e a Clube, o que impulsionou a profissionalização dos artistas aqui radicados. A construção de Brasília e a efetivação do centro-oeste como local onde o progresso se estabeleceria e conseqüentemente um surto comercial e cultural da arte aqui produzida, foram também marcantes nesta época.
Os primeiros palcos desses artistas foram os botecos da “Campininha”, hoje um tradicional bairro goianiense, berço da nova capital, assim como os parques de diversões e os ranchos de palha da festa católica do Divino Pai Eterno, em Trindade, GO.
O começo não foi fácil para Marrequinho, candidato a cantor sertanejo: houve algumas tentativas de formar duplas, como ele mesmo relata, mas tudo de forma bem amadora. Esclarece que não existiam duplas fixas, era difícil encontrar parceiros dispostos a seguir carreira de maneira mais profissional e que fossem realmente bons músicos. 

Dei algumas ’’paietadas’’ com uma meia dúzia desses candidatos a violeiros, mas, tudo de maneira muito informal, de forma amadorística mesmo. Uma cantiga aqui, outra ali, nos botecos da ‘’Campininha’’, nos palcos dos parques de diversão e principalmente nos ranchos de palhas na festa da Trindade, onde havia danças e modas sertanejas além do atendimento profissional das prostitutas. (p. 12)

Marrequinho relata que alguns dos ambientes em que se apresentavam eram pesados, perigosos, repletos de vícios e práticas ilegais, apresentando assim um retrato da atmosfera que freqüentavam e se apresentavam as duplas da época.
Além das festas religiosas e parques de diversões, esses artistas tinham como palco os cinemas e os circos, chamados “pauleiras”, que percorriam o interior do estado. O autor explica que, em sua maioria, esses circos promoviam touradas e foi o início das atuais grandes arenas de rodeio.

Nos "nossos" circos, os bois que seriam "toureados" eram alugados, ou, emprestados pelos donos de fazendas da região onde o circo estivesse "fincado". No circo, não havia palco, não. A apresentação dos artistas era realizada na própria arena, após ter sido feita a retirada dos bois, do local. O som, geralmente consistia de um amplificador de pequena potência (100 Wats), uma corneta amarrada na ponta de um mastro de uns seis metros, que era fincado na frente do circo e de um microfone quase sempre de péssima qualidade, que de vez em quando dava choque pra danar. O pedestal era um fio ou uma corda amarrada de um lado no outro, nas varas mais altas que formavam o círculo da arena, onde se pendurava o microfone. (p.60)

O cachê era acertado na base da confiança, não havia contratos, na maioria das vezes a renda do dia era divida entre o dono do circo e os artistas. Marrequinho esclarece que não era fácil tal apresentação, que ele mesmo fez algumas tentativas e não foi bem sucedido.
No ano de 1945, Waldomiro Bariani Ortêncio, um paulista crescido em Goiás, fundou o Bazar Paulistinha, que foi o primeiro representante de vendas de discos do centro oeste. Motivado pelo forte movimento comercial e a confiança estabelecida entre ele e as grandes gravadoras de discos, Bariani enviou os primeiros artistas goianos para gravarem em São Paulo em 1957. A primeira gravação foi feita por Goiá[3], Goiazinho e Zé Micuim, que formavam o Trio Amizade seguido de duplas e trios como Melrinho, Belguinha e Zino Prado, Brazão, Marinheiro e Vantuil, Marreco e Marrequinho, Adolfinho e Chitãozinho, Venâncio, Venancinho e Cambuí que formavam o Trio da Vitória[4], Lindomar, que iniciou sua carreira cantando música de Vicente Celestino adotará o sobrenome Castilho se tornando Lindomar Castilho – O Cantor das Américas, Ninico e Senin (Franquito Lopes) entre outros nomes (SOUZA. 2009, p.16).
            Marrequinho em sua trajetória fez parcerias com iniciantes como ele. Apresenta como sua primeira dupla Oswaldo, formando assim a dupla Oswaldinho e Chiquinho, que acabou devido à falta de investimento financeiro e imaturidade. Sua segunda dupla foi com um sanfoneiro de nome Relâmpago, formando o dueto Relâmpago e Chiquinho ou logo depois como Nivaldinho e Chiquinho. Relata que foi com este que aprendeu várias coisas; “inclusive beber cachaça, o que, aliás, aprecio até hoje (com moderação, é claro)” (p.13).    
Marrequinho[5] nos faz um relato da música sertaneja em Goiás na década de 50. Esclarece que, neste período, a música sertaneja era feita sem qualquer intenção de comercialização, fazia-se música por prazer, mesmo porque não havia emissora de rádio em Goiás para divulgar os trabalhos. Mas após o surgimento da primeira emissora de rádio surgiu também um interesse comercial, primeiro por parte da emissora que precisava de atrações para apresentar nos programas e depois dos próprios artistas, que queriam mostrar seu trabalho.

Com o surgimento da primeira emissora de Goiás, ai sim algumas duplas ou trios já começaram a terem o interesse de se apresentarem em alguns programas existentes na época. Tanto por necessidade das próprias emissoras de terem alguma atração nos programas, como praqueles que cantavam e queriam naturalmente alimentar sua vaidade mostrando seu trabalho ao público ouvinte daquelas emissoras. (p.61).


[1] Todas as citações, a menos que se indique o contrário, são retiradas desta obra.
[2] Campeão que foi o compositor de uma das músicas goianas mais executadas da época: A Canoa de jacarandá (SOUZA. 2009, p. 11).
[3] Goiá viria se tornar um dos grandes expoentes da composição sertaneja com músicas como “Saudade de Minha Terra”, “Recordação”, “Pé de Cedro” entre outras das mais de 400 músicas gravadas criadas por ele.
[4] Gravaram grandes sucessos como Canoa de jacarandá, Mil Mulheres, Vivendo longe do meu bem, Expresso boiadeiro entre outros.
[5] Entrevista concedida a este autor em Outubro de 2006
 
                                         5/8
                                            Continua...

CONTATO COM CHICO JR: (62) 84585052
E-mail: robsonechicojr@gmail.com





 

 


 

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