Francisco Ricardo de
Souza Jr
(Chico Jr)
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Acreditamos que para atingirmos o
entendimento do desenvolvimento cultural e os caminhos que fizeram Goiás ser
rotulado como “exportador de música sertaneja”, ou mesmo, “celeiro da música
sertaneja”, seja necessário visualizar o panorama cultural e social de nosso Estado
que foi preponderante para que essas definições se consolidassem.
Para tanto, foi necessário desenvolver
relatos sobre o surgimento da identidade caipira e visualizar esse personagem
dentro do seu contexto, como a música surgiu, como era vista por ele tendo como
pano de fundo as mudanças sociais e a busca pela identidade legitimamente
brasileira proposta pelo Estado na década de 50.
O foco, neste capítulo, estará
fundamentalmente nas raízes formadoras do universo caipira e nos aspectos concernentes,
caipira esse que se deparou com as mudanças do seu meio social que deixava de
ser rural para adotar valores urbanos. E assim, compreender a metamorfose da
música caipira que, impulsionada pela indústria cultural, se transformou em
música sertaneja urbana.
A origem caipira
A formação do caipira se dá desde o
momento da colonização brasileira, quando teve início a hibridação cultural.
Primeiramente do colonizador português com o nativo, chamado índio e,
posteriormente a mistura do negro africano escravizado no Brasil com ambos. Além de uma pequena, mas considerável
influência espanhola no litoral sul e sudeste do Brasil, principalmente no
período em que o reino de Portugal foi unificado ao da Espanha.
Em um primeiro momento, a hibridação cultural
ocorreu através das missões jesuítas que vinham cristianizar os índios, e para
isso faziam analogias entre a mensagem cristã e a cultura indígena para que o
nativo entendesse e assimilasse melhor a religião do branco, “formando na vila
de São Paulo, um reduto da miscigenação mameluca. [...] como forma de facilitar a disseminação da doutrina cristã” (SOUSA,
2005, p.24), pois o índio no Brasil, foi incorporado à sociedade seja como mão-de-obra
escrava, seja como meio de propagação da fé cristã. Dessa maneira, os jesuítas
aproveitaram a apreciação que os índios tinham por sua música e fizeram a
primeira fusão cultural ao misturar versos religiosos ao cateretê indígena. A
catira e o cururu também foram utilizados na tentativa de adaptar os rituais
católicos à cultura do índio. Acredita-se que foi nesse momento que entrou no
Brasil a viola. Instrumento que encantaria o índio e passaria a fazer parte do
universo caipira, sendo o principal símbolo da cultura caipira.
Entretanto, somente a partir do século
XVII, no momento em que o colonizador adentrou o território com o intuito de
exploração de riquezas minerais e aprisionamento de índios para a escravização,
ultrapassando as fronteiras das serras em direção às futuras Minas Gerais, é
que começaram a ser formadas no interior, através das bandeiras, pequenas vilas
habitadas por europeus, por índios aprisionados e posteriormente por escravos
negros. Vilas estas que ficariam completamente desconectadas da civilização
existente nos centros urbanos europeus e mesmo das que se formavam no litoral
do Brasil. De tal maneira que se criava nessas vilas linguajar e valores
próprios, ou seja, uma vivência cultural própria que foi a única coisa que
restou das bandeiras “a miscigenação entre o branco e o índio, semeada pelos
sertões [...] vivendo em circunstâncias precárias, se defendendo com o
improviso para poder sobreviver” onde “as camadas intermediárias absorveram a
economia de subsistência da coleta e da caça, [...]” e “o provisório da
aventura se impregnou na habitação, na dieta e na cultura do paulistano que ia
ocupando o interior” (SOUSA, 2005, p.27/28).
Esse modo de vida
atracado, fechado em seus afazeres, permitiu-lhe apenas uma economia fechada,
voltada ao seu próprio sustento e ao de sua família. As aglomerações caipiras
surgiram a partir de agrupamentos familiares que tinham como vínculos a ligação
sentimental ao lugar – não tão forte a ponto de fazê-los criar raízes que os
fixassem a terra – a possibilidade de prática de auxílio mútuo e as chamadas
atividades lúdico-religiosas (SOUSA, 2005, p.31).
Misturavam-se
assim as diversas concepções de experiências culturais existentes entre aqueles
povos, provocando o que “os estudiosos chamariam de hibridismo cultural”
(CALDAS, 1987, p.14).
Vemos como a música caipira, tanto a melodia quanto a letra, nascerá de uma
fusão de múltiplas expressões culturais e de vários gêneros musicais, o que nos
impede de classificarmos qualquer gênero como genuíno, já que o estilo também é
resultante do processo de Hibridação,
segundo Canclini, hibridação:
São processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de
forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultados de
hibridações razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras (CANCLINI,
2003, p. 19).
Apesar de toda essa formação
histórica, a cultura caipira só passa a ser percebida de forma mais efetiva no
meio urbano a partir do final do século XIX e início do século XX, quando o
tema foi exposto nas telas do pintor José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899),
por exemplo, Caipira Picando Fumo, 1893; Violeiro, 1899; e do trabalho do
jornalista Amadeu Amaral que publicou O Dialeto
Caipira em 1920, livro que fazia um registro da origem e forma da linguagem
caipira e seu processo de hibridação, através das influências da língua falada
pelo índio, pelo português e pelo negro. Este movimento em torno da cultura
caipira foi fortalecido em 1922, quando intelectuais e artistas promoveram a
Semana da Arte Moderna, onde:
Escritores como
Oswald de Andrade e Graça Aranha, pintores como Segall, Anita Malfati, Tarsila
do Amaral, Di Cavalcante, poetas como Mário de Andrade e Manuel Bandeira e o
maestro Villa-Lobos tentavam renovar as artes e a forma de pensar o país,
valorizando tudo que era nacional, verdadeiro, nativo, original (NEPOMUCENO,
1999, p. 19).
Mas, quando o caipira passa a ser alvo
de chacotas e sátiras escritas por literatos, é que a cidade toma conhecimento
de seu universo, mesmo que deturpado pela visão preconceituosa desses
escritores. Dentre estes escritos, destaca-se um artigo publicado em 1914 pelo
então desconhecido Monteiro Lobato, que nomeou o caipira como Jeca Tatu,
questionando a sua civilidade e dizendo que este “estava alheio à história de
seu país” e “passava o tempo acocorado”, (SOUSA, 2005, p.19) sem se preocupar
com os problemas relativos à modernização do país. “Nada o desperta. Nenhuma
ferroada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida,
Jeca, antes de agir, acocora-se” (LOBATO, 1962, p. 280). E nada o despertou
mesmo, pois o caboclo, como era chamado o caipira até então, continuou alheio
às mudanças ocorridas no país e mesmo às críticas a ele dirigidas.
Este processo de formação caricatural
do caipira é fortalecido no Brasil, segundo o professor Álvaro Catelan (2005,
p. 32), em 1918 com a publicação do livro Urupês, do mesmo Lobato, que reuniu
entre outros contos um que foi homônimo do título do livro. Segundo cálculos de
Lobato, o livro alcançou uma tiragem de mais de 100.000 exemplares em pouco
mais de cinco anos de publicação e serviu para estereotipar definitivamente a
imagem do caipira em todo território nacional. Seu personagem Jeca Tatu, que
foi imortalizado por Mazzaropi no cinema, vai consolidar a construção da imagem
do caipira, sempre é claro, com caráter pejorativo.
Em contrapartida a esse processo de
depreciação, surgiu uma figura que dedicou sua vida ao mundo caipira como um
todo: Cornélio Pires, que foi o grande desbravador desse mundo ainda
desconhecido no meio urbano. Seu primeiro livro foi publicado em 1910,
intitulado Musa Caipira, onde reunia
poemas caipiras e o último foi publicado em 1944, tendo escrito mais de vinte
livros a respeito do universo caipira. Ele caracterizou um caipira diferente
daquele visto por Lobato.
.
divertido, perspicaz,
alegre, musical, pitoresco, [...] o matuto era como feijão ou café: havia
vários tipos, cada qual com seu jeito de ser, mas quase sempre amoroso,
esperto, dissimulado, generoso, valente, arredio, tímido, debochado, cantador,
namorador, zeloso da família, dos filhos, do canivete e da viola – ou apenas
dos dois últimos (NEPOMUCENO, 1999, p. 96).
A origem da palavra “caboclo” provém da palavra tupi caá-boc, que significa procedente do
mato. Esta era usada já no século XVI para designar o índio. Já a palavra “caipira” tem origem incerta, aqui vamos
levar em consideração os estudos do pioneiro pesquisador acerca do assunto, Cornélio
Pires. “A raiz da palavra, caí,
significa o gesto do macaco escondendo o rosto”. Ela aparece em capipiara, “o que é do mato”. [...]
Enfim, aparece em caapi, “trabalhar a
terra” e em caapiára, “lavrador”
(Grifos do autor. SOUSA, 2005, p.21). Que seria, enfim, a raiz da palavra
“caipira”. Nesse sentido,
[...] as expressões sertanejo e caipira padecem da mesma ambigüidade, do mesmo processo de fissura
do significado em dois pólos antitéticos que produzem orientação ideológica
diversa. De um lado, a idéia de que o sertão ainda é o que resta da
possibilidade de uma vida harmoniosa com a natureza e, de outro, a idéia de que
ele é o lugar do atraso. [...], o caipira também possui uma face positiva e
outra negativa [...] (Grifo do autor. PIMENTEL, 1997, p. 218).
Como o termo “sertão” sempre foi usado
para definir as áreas exteriores às grandes cidades, seja o campo, colinas,
cerrado ou mesmo cidades interioranas, então o caipira acabou sendo inserido no
universo sertanejo por este termo representar algo mais genérico sobre os
habitantes não urbanos.
Mas como podemos definir a natureza do
caipira? Nesse sentido preferimos adotar a perspectiva que nos é apresentada no
estudo Populações Meridionais do Brasil,
de Oliveira Vianna, que delineia quatro características básicas no caráter do
caipira. São elas: “fidelidade à
palavra dada, o que denota integridade e seriedade, qualidade reforçada pela
sua probidade; respeitabilidade pelo próximo e por si próprio, suas crenças e
credos; e independência moral,
característica que reforça sua gênese quase isolada da comunidade” (Citado por:
SOUSA, 2005, p.35).
Enfim, o caipira é o fruto do próprio
meio em que foi criado. Se ele fica de cócoras enquanto o trem do progresso
passa, é apenas uma forma dele visualizar o que está ocorrendo de maneira a não
se intrometer em assunto que é desconhecido por ele. Nesta perspectiva,
realmente ele fica alheio à história por se portar de forma atemporal. Mas,
querendo ou não, o universo caipira sempre trouxe curiosidade ao homem citadino,
seja pelo distanciamento do modo de ser do sertanejo em relação ao homem
urbano, seja pelo modo de viver mantendo valores que já não são tão usados na
cidade.
Vejamos agora como a música caipira se
transformou em música sertaneja e virou produto na indústria cultural que se
formava no Brasil.
1.1 O caipira urbanizado
O surgimento da música caipira é muito
questionado, pois para entendê-lo precisaríamos fazer aqui um levantamento de
toda história cultural dos povos que formaram o Brasil (o que não é o objetivo
deste trabalho): os portugueses, os nativos ameríndios, os diversos grupos
étnicos africanos que foram aqui escravizados, os espanhóis, os italianos,
enfim, todos os que, de alguma maneira, trouxeram para cá suas experiências
culturais. Pois na diversidade da nossa cultura popular encontram-se diversos
fatores e manifestações culturais desses povos, seja na música, na dança, ou na
religiosidade. Vejamos:
[...] o recortado,
folia do Divino, cana verde, fofa, chula, dança de São Gonçalo (portuguesa),
congada, batuque, lundu (africana), cururu, catira ou cateretê (indígena), a
tarantela (italiana), o fandango (espanhol) e outras fazem parte do universo
lúdico do homem rural [...] após passarem por diversas transformações e se
adaptarem a realidade brasileira e às diferenças regionais deram origem ao que
chamamos hoje de música caipira. (Grifo
do autor. CALDAS, 1987, p.15)
As relações sociais do caipira
legítimo eram feitas nos mutirões que tinham um caráter religioso de ajuda
mútua, e era nas festas religiosas onde estes caipiras expressam seus
sentimentos e sua essência através da música e da dança, seja a de São Gonçalo,
seja a Folia de Reis ou do Divino. E é nesse contexto que surgirá a música caipira,
originária de um estereótipo que será utilizado posteriormente.
Partindo daí, a música feita pelo
homem simples interiorano surge na forma de expressão artística mais singela e
mais pura, mostrando a simplicidade da expressão de seu sentimento, com o único
objetivo de exteriorizá-lo. Ou seja, sem a menor pretensão comercial de
divulgação, a prova disso é o anonimato da maioria das composições e o tempo
das músicas originalmente feitas pelo homem interiorano, que não obedeciam às
regras da indústria fonográfica. Este estilo foi chamado depreciativamente de
música caipira, pois “havia sempre um motivo para pichá-la. Quando não eram
letra e melodia, tidas como pobres
inexpressivas e redundantes, o arranjo musical, a voz da dupla, os
instrumentos, enfim, alguma coisa estava errada”. (Grifo do autor. CALDAS, 1987,
p.7) O gênero não satisfazia, assim, aos críticos musicais. Que, ao longo de
toda a trajetória da música caipira, sempre a viram com indiferença, talvez por
desconhecimento de sua própria história. Ou talvez, pelo simples fato desses
críticos não terem ligações com os valores culturais que a música caipira emana
que:
Além da evidente
função lúdica, de lazer, deve-se ainda destacar seu papel na produção econômica
através do “mutirão”, no ritual religioso das festas tradicionais da igreja e,
principalmente, como elemento agregador da própria comunidade, mantendo-a coesa
através da prática e da preservação dos seus valores culturais. (CALDAS, 1987,
p.15)
É interessante notarmos que a música
popular nasce da mesma miscigenação cultural que dá origem à música caipira, é
claro que adotando características distintas, até mesmo pela diversidade
cultural existente no Brasil:
A música popular, em essência urbana,
vai se formar a partir dessa gestação criativa de temas folclóricos e rurais,
sendo adaptada ao formato curto, a canção, popularizada com o advento das
gravações fonográficas, dos discos de gramofone. Esse processo ocorreu com o
choro, [...] a marcha, [...] o samba. É nesse período que a criação musical
deixa de ser folclórica para ser popular assinada por um “autor” (Apud. SOUSA,
2005, p. 78).
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CONTINUA...
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