MARREQUINHO – O
MENINO DE CAMPO FORMOSO
Memórias de um
artista sertanejo
Capítulo
XXXIII
A Inspiração
Admito que, em algumas das minhas
composições descrevo acontecimentos vivenciados por mim, em outras, não. Só que
quando o compositor está escrevendo uma letra de música, ele, quase sempre, se
coloca no lugar daquele que está sendo retratado no tema, e acaba absorvendo as
emoções, o estado da alma e os mesmos sentimentos que está “sacudindo” o seu
personagem fictício. Essa influência pode durar dias, meses e até anos para
sair definitivamente da mente do autor. Chega a sentir, literalmente falando,
os efeitos daquela situação, fictícia para ele, mas, que irá coincidir com a
realidade de muitos dos que venham a ouvir a gravação. Isso leva o público,
algumas vezes, a confundir o compositor e até mesmo os intérpretes, com os
personagens e situações descritas pelo autor em suas composições. Quando me
tornei caminhoneiro acreditei que estava encerrando definitivamente o meu
relacionamento com a música. Eu estava enganado. A inspiração, assim como não
pode ser adquirida como um produto, também não pode ser excluída da mente onde
ela se hospeda para desenvolver suas atividades. Inspiração é dom, nasce com o
individuo. Pode, quando muito, ser ignorada, mas não anulada. Eu havia decidido
me separar dela, mas, ela, ao que parece, não estava decidida a se separar de
mim. Ninguém sabe de onde ela vem, nem como, e nem porque vem. Chega
sutilmente, como que sondando a mente através da qual deseja se manifestar. Se
conseguir acesso, aloja-se como se fosse a "dona da casa" e ocupa o
cérebro do seu voluntário (ou involuntário) hospedeiro, onde faz brotar as
idéias com que são criadas obras de arte, nos seus inúmeros segmentos. Passei
dois anos sem compor nada. Mas, estava começando a me sentir sem graça,
frustrado, por não ver meu nome impresso no selo de um disco de lançamento
recente (na época, claro). Então, pensei: "Vou voltar a escrever, mesmo
que seja só por distração. Sou compositor. Se sei usar o que a inspiração me
oferece para satisfazer essa minha vontade, por que não fazê-lo?" E
comecei exercitar a imaginação, tentando compor alguma coisa que valesse a
pena. Então, descobri algo que me surpreendeu. A inspiração não é manipulável.
Ela se manifesta quando quer, e, não quando se é convocada. Eu pensava que ela
estaria a minha disposição quando eu bem entendesse. Isso não aconteceu. Eu
tentava, tentava e não conseguia escrever nada, mas nada mesmo. Então,
entreguei os pontos, e admiti ser um mero instrumento que a inspiração usava
para produzir as composições musicais, que eu, arrogantemente pensava serem
minhas. Chegando a essa decepcionante, mas, esclarecedora conclusão, parei de
"forçar a barra", conformei-me com a situação, aceitei a verdade, e,
humildemente, me coloquei à disposição para servir de receptor de qualquer
manifestação que por ventura a caprichosa inspiração, quisesse algum dia,
transmitir, através do meu pensamento. E, ela, felizmente, se manifestou. De
maneira imprevisível, como sempre. Aconteceu da seguinte forma: Eu estava
voltando de uma viagem de Belém do Pará. Percorria a Belém-Brasília, no trecho
entre Miranorte e Paraíso do Norte (Hoje, Paraiso do Tocantins). Estava
rompendo o dia, uma brisa morna acariciava meu rosto, direcionada pelo
quebra-vento da janela do caminhão. Não estava pensando em nada. Concentrava-me
na estrada, ouvindo o rugido contínuo do possante motor. Então, ouvi
nitidamente, uma voz, murmurar em meus ouvidos, umas frases que diziam assim:
"Na casinha verde de número vinte/ Na
pequena Rua do Bairro Bonfim/ É onde eu passo momentos felizes/ Com uma pessoa
que gosta de mim".
Levei um susto. Em seguida me lembrei da proposta que eu
havia feito para a inspiração e lhe agradeci, comovido, por ela não estar,
mais, de mal, comigo. E, novamente, a voz se fez ouvir:
"Alma sertaneja, coração amigo/ Naquele endereço vive a me esperar/ Ali,
eu encontro a felicidade/ Que num agasalho de simplicidade/ Ansiosamente me
espera chegar".
Aí, fui envolvido pela emoção. Parei o caminhão, desci me
ajoelhei e fiz uma prece de agradecimento a Deus, por estar me permitindo ter
de volta, o que eu, irresponsávelmente havia tentado afastar de mim: a
inspiração. Prossegui viagem, ouvindo frases, até se formarem duas estrofes,
com nove versos cada uma.
"A casinha verde é meu mundo de sonhos/ Na afinidade de
dois corações/ Naquele lugar eu encontro refúgio/ Pra esconder das mágoas e
desilusões/ Ali, só se fala de coisas bonitas/ Na doce harmonia de amor sem
igual/ Ali, me espera uma certa pessoa/ Criatura humilde, tão santa e tão boa/
Que vive tranquila, na ausência do mal".
Então, a voz se calou. A quem estaria sendo
direcionados esses versos? Quem seria essa pessoa portadora de tantas virtudes
e de tanta dedicação a mim? A resposta para estas perguntas, só me foi dada
alguns meses depois. Outra vez, voltando de viagem, passando pelo mesmo trecho
de estrada, Miranorte/Paraíso do Norte, ao nascer do dia. Dos recônditos da minha alma ou, da minha mente surgiram essas palavras:
"É uma
velhinha de cabelos brancos/ De rosto enrugado e andar vacilante/ Que sente nos
ombros, o peso da idade/ Porém, não se queixa, nem por um instante/ É minha
mãezinha, que ali, eu encontro/ À quem eu dedico o amor mais profundo/ A
casinha verde é bastante singela/ Mas, tudo o que amo está dentro dela/ Porque,
minha mãe representa o meu mundo".
Acervo
Pessoal
D. Maria Rosa da Piedade
(Falecida em
1993 aos 87 anos de Idade)
Mãe
do Compositor Marrequinho
Chorei copiosamente, confesso. E, em
meio as lágrimas de emoção e de contentamento, minha conturbada mente ainda
conseguiu ouvir "a voz" murmurar, sugerindo que o título da
composição, fosse “ENDEREÇO DA
FELICIDADE”. Não considerei uma sugestão, e sim, uma ordem que obedeci sem
titubear.
Chegando a Goiânia, levei a letra ao Odaés Rosa, com quem eu mantinha
muita afinidade musical e lhe perguntei se queria musicá-la. Ele aceitou, e sua
inspiração o assessorou na criação de uma belíssima melodia. Essa composição
foi gravada pelo "Trio Parada
Dura" (Creone, Barreirito e Mangabinha) em 1.975 (No LP "Blusa
Vermelha") e teve uma tremenda
repercussão em todo o Brasil, graças a Deus.
Posteriormente esta música foi regravada
por “Di paullo e Paulino” no CD
Marrequinho – Uma Vida, Uma história”.
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Memórias de um artista sertanejo
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